IDEIAS | Aonde uma eleição quase foi aquilo que não deveria ter sido
29 de maio de 2021 às 0h15
Meu querido amigo,
Se você estivesse por aqui poderíamos ter ido juntos à eleição. E uma vez lá, teríamos todo tempo do mundo para colocarmos nossa conversa em dia. Afinal, depois da suja manobra que fizeram para mudar o sistema eleitoral, as extensas e intermináveis filas puseram de castigo a mim e as centenas de milhares de eleitores em todo o país. Obrigaram-nos a perder, sob uma temperatura de 45 graus, preciosas horas de nosso escasso tempo…
Talvez Nilton Porfírio tenha exagerado quando enviou uma mensagem de texto para Zé da Pipa. Estava quente, o suor escorria pelas faces dos mais calorentos, mas os termômetros de rua indicavam trinta e cinco graus centígrados no máximo, daí não passava. A mensagem era extensa e, à medida que as letras se juntavam para formar as palavras naquela carta, ficava clara a implicância e impaciência do seu amigo com a volta do voto impresso. Esse tipo de voto o lembrava de um remoto passado, onde o tempo gasto para depositar a cédula na urna eleitoral podia ser de horas a fio.
Zé da Pipa faltara à eleição. Apesar de discordar das novas regras impostas, teria ido votar, se não estivesse no exterior, isolado em uma fazenda no interior da França. A greve geral o impedira de ir à embaixada de seu país para cumprir com a sua obrigação eleitoral. Ele se importava, mais do que nunca, com os resultados daquela eleição. Torcia para mudanças e para a vitória da oposição.
O seu contentamento foi grande ao saber do resultado promulgado. A sua expectativa fora alcançada e a sua ansiedade aplacada. Ele tinha o receio de ver a sua preferência eleitoral ser vencida por diferença de um único voto: o seu. Ele jamais se perdoaria. O seu receio era de que o presidente, candidato à reeleição, superasse o baixo índice de aprovação conseguido graças à sua lastimável e criminosa condução frente a uma pandemia que matara mais de meio milhão de pessoas no país. O seu medo procedia porque a memória do povo era curta, e poderiam esquecer todas as nefastas ações do governo. Afinal, poderiam se influenciar por uma máquina publicitária ancorada em notícias falsas, onde o tal presidente exercia com muita propriedade o seu principal esporte: o de mentir deslavadamente.
Os comissários eleitorais reconheceram a vitória da oposição e lavraram a ata. “Viva a democracia: tirano posto, tirano morto”, pensou ele. Pensou, mas pensou errado. O seu contentamento durou pouco, quando um telefonema de Nilton Porfirio lhe dissera que o derrotado à eleição presidencial não aceitara a derrota. “Nem Deus me tira daqui”, dissera ele. Irei pedir a recontagem de votos. Essa p… de eleição foi fraudada, aí tem o dedinho sujo de m… desses fdp comunistas e de raqueres”, disse a bizarra figura. “Raqueres em uma eleição através de voto no papel? Esse idiota é um tremendo ignorante. E depois, não foi ele que, com o apoio de seus robotizados seguidores, conseguiu que o presidente da Câmara dos Deputados aprovasse a volta da eleição impressa?”, perguntou para si mesmo Zé da Pipa. No fundo, ele sabia o quão difícil é, para algumas pessoas, largar o poder. Sabia, também, que a síndrome de abstinência que vem para algumas pessoas viciadas por esse poder, e pelas facilidades que ele oferece, é pior do que a sofridas por aqueles que tentam deixar vícios de drogas pesadas. Isso o preocupava.
Avançou com a reflexão que fazia sobre o tema. Lembrou-se, então, da obra mestre da filosofia política escrita para Lorenzo de Medicis. O livro fora escrito nos últimos meses do ano de 1513, na Vila de San Casciano, por um Maquiavel no ostracismo, com a finalidade de determinar qual era a essência dos estados, quantas classes esses estados tinham, e como essas classes eram adquiridas, mantidas e, enfim, perdidas. La pelas tantas, Zé da Pipa julgou encontrar o amparo para entender a verdade real das “coisas”, ao se deparar com a parte do livro que continha a máxima do maquiavelismo: o uso da força e da astúcia, a teoria da simulação e dissimulação, “um príncipe não necessita ser virtuoso, basta-lhe apenas simular sê-lo; o não cumprimento da palavra dada, e o princípio de que o fim justifica os meios”.
“Pera lá, a bestial ignorância do ex-presidente não lhe permitiria simular-se como um virtuoso, pensou ele. Afinal, dignidade e honestidade, além de outras boas adjetivações, fogem dele como o diabo foge da cruz. Bem, com relação a faltar com a palavra dada, aí, convenhamos, o sujeito é insuperável. Antes de eleger-se dissera aos seus ingênuos e tolos eleitores que jamais faria acordo com políticos de certa área. Uma vez eleito, fizera tantas concessões a esses tais políticos, dando-lhes escusas verbas, que se tornara refém do sistema que ele jurou combater na sua campanha”, pensou Zé da Pipa, ao finalizar a sua reflexão.
Súbito, o despertador do seu celular o acorda. Como de hábito, nesse mesmo celular, ele acessa o jornal. Queria saber o resultado da votação sobre o retorno do voto através da cédula.