Grande Resignação é alerta para lideranças

24 de fevereiro de 2022 às 0h30

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Para Eliane Ramos, o tamanho da tragédia humana que vivemos levou muitos à reflexão | Crédito: ABRH / Divulgacão

Fenômeno já conhecido nos Estados Unidos e na Europa, a Great Resignation (“grande resignação”) já desembarcou no Brasil e leva certa perplexidade às empresas, à grande massa de trabalhadores desempregados no País e até a alguns analistas e profissionais de recursos humanos (RH). Nessas regiões do planeta, ainda que pesem os efeitos dramáticos da pandemia sobre as pessoas e a economia, nunca foi tão grande o volume de pessoas pedindo demissão.

No Brasil, o fenômeno se torna ainda mais complexo e paradoxal diante do número de desempregados – mais de 13 milhões de pessoas, de acordo com os números de dezembro de 2021, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma taxa de desemprego de 11,6% no País – e da baixa qualificação da nossa mão de obra em comparação com as principais economias do Ocidente.

Nos EUA, cerca de 4 milhões de trabalhadores dão adeus aos seus empregos formais mensalmente, diante de uma taxa de desemprego de 3,9%. No Brasil, estima-se que 500 mil pessoas tomem a mesma decisão a cada mês, o dobro do registrado antes da pandemia. Os números foram apurados e analisados pela Lagom Data e publicados pela revista “Você S.A”.

Segundo o professor doutor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, na Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP) e diretor da Fundação para Pesquisa e Desenvolvimento da Administração, Contabilidade e Economia (Fundace), Amaury Patrick Gremaud, a “grande resignação” tem um componente geracional, com as novas gerações menos apegadas às empresas, e é também reflexo e uma nova consciência que já aparecia antes da pandemia, mas que foi fortemente impactada por ela: a busca de um propósito e um novo equilíbrio entre vida pessoal e trabalho.

“Os EUA e a Europa têm, de um lado, a questão da menor qualidade dos empregos gerados no pós-pandemia e há uma certa resistência da população em exercer atividades que antes eram feitas pelos imigrantes. E, de outro lado, a questão geracional e uma mudança no estilo de emprego, agora mais fluido, por tarefa e não por hora, e a revolução tecnológica que permite o trabalho remoto. Isso acontece em alguma medida no Brasil. A opção de ir para um emprego formal está perdendo valor. Com a pandemia há uma certa resignação dos trabalhadores que perderam o emprego e não tiveram apoio. Eles se viraram e agora acham que essa pode ser a melhor essa opção. As mudanças na legislação, que levaram a uma perda de proteção por parte dos trabalhadores, faz com que a sensação de segurança do emprego de carteira assinada caia muito. Nesse contexto, a opção por uma tentativa mais empreendedora cresce muito”, explica Gremaud.

Para a presidente do Conselho da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH Brasil) e diretora-regional da Predictive Index (PI), Eliane Ramos, a pandemia deixou claro que o ambiente corporativo não é determinante apenas para a produtividade ou para o engajamento das equipes. É determinante para a própria permanência dos colaboradores naquela empresa.

Uma pesquisa global feita pela Korn Ferry em janeiro deste ano, mostra que 38% daqueles que deixaram o emprego recentemente ou planejam deixar, não têm outro em vista. O principal motivo da desistência para 32% dos profissionais está relacionado à cultura da empresa, em seguida é possível notar o chefe ruim, apontado por 28% dos participantes da pesquisa.

Segundo estudo feito pela plataforma Linkedin, no Brasil, 49% das pessoas querem trocar de emprego em 2022. O percentual sobe para 61% no estrato entre 16 e 24 anos. Ainda assim, o Brasil tem o segundo menor índice de pessoas que querem mudar de emprego, ficando à frente apenas da França, com 44%.

“Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, as pessoas tiveram muito medo de perder o emprego e muitas realmente perderam. Mas com o passar do tempo, o tamanho da tragédia humana que vivemos levou muitos à reflexão. As pessoas estão deixando seus empregos em busca de uma melhor qualidade de vida e isso não tem, necessariamente, a ver com a remuneração ou só com isso. Elas querem ter tempo para ficar com a família, ter contato com a natureza e se sentirem realmente pertencentes a algo maior, que tenha um propósito. E já é hora de as empresas tomarem consciência disso. Não adianta apenas medidas ‘cosméticas’. Não estamos falando de colocar uma mesa de ping-pong no canto da sala. É algo muito mais profundo que isso e o líder é peça-chave para que tudo funcione”, alerta Eliane Ramos.

“Grande Resignação” já alcança também os cargos mais operacionais, alerta Priscila Guskuma | Crédito: Divulgação

A fundadora do Instituto Guskuma de Desenvolvimento Humano (IGDH), Priscila Guskuma, esclarece que, embora muito mais comum nos estratos médios e altos das companhias, a “Grande Resignação” já alcança também os cargos mais operacionais e isso está ligado ao volume de informações disponíveis.

“Hoje tem muito mais informação do que no passado e isso leva as pessoas a refletirem. Do outro lado, tem as empresas que oferecem boas condições e não conseguem reter porque a cobrança por resultados também cresce muito e muita gente não está disposta a pagar esse preço. É uma disrupção na cultura empresarial e na cultura do trabalho. Hoje as empresas estão focando em poucas pessoas, naquelas que são estratégicas. Quem gera conhecimento, pensa na estratégia, faz o acompanhamento dos processos, é quem vai ficar. A pergunta que fica é o quanto as empresas prepararam as pessoas para acompanhar esse novo ritmo. Por isso, uma das profissões que mais vai crescer é o headhunter (caçador de talentos). Toda vez que alguém vai embora ele leva o investimento que foi feito em treinamento e parte do segredo do negócio. Sai muito mais caro não treinar”, destaca Priscila Guskuma.

Esse movimento tem implicações não apenas sobre trabalhadores e empresas, mas também sobre o sistema previdenciário e, em última instância, sobre o resultado econômico do País. E, embora essa disruptura esteja apenas começando, ela tem limites sociais especialmente em um país marcado pela desigualdade e com a pobreza crescente como o Brasil.

“É claro que não vai caber todo mundo no empreendedorismo. Em algum momento parte dessa população vai voltar ao mercado de trabalho. Isso seria mais fácil se a economia estivesse aquecida, mas não é o que acontece e o Brasil continua burocrático e com baixo acesso ao crédito para os mais pobres. Enquanto não tivermos uma mudança e voltarmos a gerar melhores empregos em setores mais fortes, esse fenômeno vai persistir, mesmo que seja em menor proporção. Tudo isso também alcança o governo e a arrecadação. Em tese, com as reformas dos últimos anos, que diminuíram os custos públicos em termos de direitos sociais, equilibraria as contas, mas não é isso que acontece. Esse processo de ‘informalização’ e precarização dos empregos no longo prazo é ruim para as contas públicas e para a qualidade de vida das pessoas, impactando a produtividade do País”, avalia o professor de economia da USP.

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