Conheça o romance “Outono de carne estranha”, de Airton Souza

Vencedor de diversos prêmios, autor também conquistou o Prêmio Sesc de Literatura no ano passado com a obra

29 de março de 2024 às 5h35

Airton Souza não começou ontem. Nascido em Marabá, no Pará, é mestre em letras e doutorando no programa de pós-graduação em comunicação, cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). São iniciativas suas o “Anuário de Poesia Paraense” e o “Prêmio Amazônia de Literatura”. Autor de vários livros, teve sua poesia traduzida para o espanhol, o inglês e o alemão. Vencedor de diversos prêmios, também conquistou o Prêmio Sesc de Literatura no ano passado, com o impressionante “Outono de carne estranha” (Editora Record, 175 páginas).

No texto da ‘orelha’, Joca Reiners Terron e Suzana Vargas adiantam aos leitores um pouco do que eles vão encontrar: “Escrito com prosa caracterizada por forte lirismo, ruminações filosóficas e cenas inesquecíveis, “Outono de carne estranha” é romance marcado pelo erotismo e pelo clima quente do norte do país”. A dedicatória do autor é mais uma pista do que virá pela frente: “para os que morreram sonhando com o ouro de Serra Pelada; para os que ainda estão vivos esperando a sobra e a cura de suas desgraças; para os garimpeiros de pouca fé; para os gays, covardemente assassinados neste País; para meu pai, Mundico, que guardou sua carteirinha amarela até morrer, esperançoso em receber a sobra; para minha vó, Antônia, que me ensinou a adiar o fim das rezas”.

Corajoso, explícito, contundente, sem rodeios ou disfarces, o texto abre espaço para o surpreendente: a relação amorosa entre Manel e Zuza, dois personagens sujeitos à infernal vida do garimpo, reféns do autoritarismo, da exploração e da violência reinantes no lugar. Zuza, especialmente, pagará um preço alto por ser quem é, como era de se esperar. Salta aos olhos o contraste entre a paixão que atrai um ao outro e a aridez do seu entorno, hostil a afetos que atenuem a brutalidade. Se alguma das regras impostas pelo tal ‘Marechal’ é violada, a punição é a tortura: “Antes de os garimpeiros descerem a ladeira para cantar o hino nacional, na praça central, o ladrão foi amarrado em um pau fincado no meio da rua principal. (…) Um dos bate-paus conferiu se o homem estava bem amarrado. Trouxe um balde de água com açúcar.

Ficou de cócoras e besuntou com aquela água de açúcar, dos joelhos para baixo, as pernas do garimpeiro. Em pé, conferiu a quantidade de buracos feitos próximos aos pés do homem. E, só então, começou a espalhar açúcar refinado dentro dos valados. (…) Não demorou muito dois dos bate-paus se aproximaram com uma caixa de papelão nas mãos. Ao aceno do marechal, começaram a espalhar formigas, com muita candura, por cima das valas”.

As precárias condições a que milhares de brasileiros foram submetidos em Serra Pelada, naqueles tempos difíceis, só poderia resultar no óbvio: a morte fácil e injusta. É terrível a cena do desmoronamento de terra: “Demorou saber quantos homens haviam sido soterrados. Perante aquilo, a única certeza era a de que o inverno nunca mais molharia seus pés fúlvidos. Suas unhas crescidas e entupidas de terra. Os corpos toldados pelas colinas do garimpo. De longe, dava para enxergar sete mãos espalmadas. Manchadas de cores quase turquesa. Os dedos retesados. As palmas das mãos caiadas de pequenos monturos de terra aparentavam ser da mesma pessoa. O melechete tem dessas coisas: deixa as carnes dos corpos dos garimpeiros iguaizinhas”.

*Jornalista. Doutor em literatura. Presidente emérito da Academia Mineira de Letras

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